A cinelândia da Liberdade

Por Lúcia Nagib (Crítica e pesquisadora de cinema, autora de diversos livros sobre cinema japonês, foi professora na Universidade de Campinas. Atualmente leciona na Universidade de Leeds, na Inglaterra.)

A história do cinema no Japão é marcada ao mesmo tempo por inovação e tradição. Nascido ao final do século XIX, pouco depois de se estabelecer na Europa, era fruto tanto do avanço industrial e comercial quanto do teatro tradicional japonês, especialmente o kabuki, que abrigou as primeiras casas de produção de filmes, como a Nikkatsu e a Shochiku. O cinema tornou-se, assim, parte essencial da identidade cultural japonesa, acompanhando até o outro lado do globo aqueles que haviam deixado o Oriente para tentar a sorte no Novo Mundo. Por José Fioroni e Edna Kobori sabemos que curtas-metragens noticiosos ou documentais do Japão circulavam no interior paulista ao longo dos anos 20. O mais antigo registro dessa presença data de 1929, quando foi fundada, por Masaichi Saito, a Nippaku Shinema-Sha (Companhia Cinematográfica Nipo-Brasileira), primeira exibidora comercial de filmes japoneses no Brasil, sediada na cidade de Bauru. A Nippaku passou a importar filmes de ficção de longa metragem, conquistando cada vez mais espectadores na longínqua diáspora.


Cine Jóia: produções da Toho, incluindo obras primas de Akira Kurosawa

A distribuição dos filmes pelo interior paulista se dava pelas estradas de ferro Noroeste, Paulista, Sorocabana e Mogiana que cortavam as lavouras. A própria Nippaku realizou um filme, intitulado Noroeste-sen isshu (1929), documentando essa saga. Conforme informam Fioroni e Kobori, essa atividade cinematográfica envolvia uma complicada operação. Toneladas de equipamentos tinham de ser transportadas em caminhões por estradas de terra esburacadas a locais desprovidos de luz elétrica, onde os filmes eram projetados em galpões de madeira do modo mais bizarro: um gerador improvisado era alimentado pelo próprio caminhão, em cujo motor atava-se uma correia movimentada por sua roda traseira, suspensa no ar.

O progresso do cinema na matriz tinha reflexos curiosos nos trópicos. No Japão, a chegada do cinema sonoro no início dos anos 30 pusera um fim abrupto à profissão de benshi. Sabe-se que muitos países usavam explicadores na época do cinema silencioso, mas, como bem observa Donald Richie, em nenhum lugar essa figura adquiriu a importância que teve no Japão. Os benshi eram atores profissionais, frequentemente provindos do kabuki, cujo papel era traduzir ao espectador japonês os exóticos hábitos ocidentais, como o beijo na boca. Também cabia ao benshi construir uma história, quando o filme se constituía de vários fragmentos curtos, dando-lhe, ao final, um sentido moral. Vendo-se na rua da amargura, muitos desses explicadores, fiéis à profissão como verdadeiros samurais, não se conformaram, chegando a atitudes extremas. Foi o caso, por exemplo, de Heigo Kurosawa, um talentoso benshi de 27 anos que, ao ser demitido, se suicidou, conforme relato emocionado de seu irmão mais novo, Akira Kurosawa, que com ele aprendera a gostar de cinema. Outros benshi desempregados, porém, preferiram tentar a sorte no Brasil, onde o cinema mudo persistia e lhes ofereceria mais alguns anos de carreira.

Mas é claro que o ramo cinematográfico também progredia por aqui. No começo dos anos 30, o cinema japonês viu-se promovido da vida ambulante para teatros fixos, com a transferência da sede da Nippaku para a capital paulista. Em 1932, o bairro da Liberdade já contava com dois mil japoneses residentes, e essa população crescente garantia público para projeções a princípio avulsas, em salões alugados, e em seguida no cine-teatro São Paulo, que passou a incluir filmes japoneses em sua programação. As distribuidoras de filmes japoneses se multiplicaram, destacando-se, dentre elas, a Nippon Kinema, fundada por Kimiyasu Hirata em 1935. Nesse período, o público já tinha acesso a obras importantes de Minoru Murata, Shigeyoshi Suzuki, Tomotaka Tasaka, e há registro da projeção de algumas obras-primas, como A feiticeira das águas (Taki no shiraito, 1933), de Kenji Mizoguchi.

A próspera atividade foi, porém, subitamente interrompida com a entrada do Japão na 2ª Guerra Mundial, em 1941. Os japoneses do Brasil passaram a ser perseguidos, sobretudo após o governo Vargas romper relações diplomáticas com o Japão, em 1942. Muitos foram expulsos de suas residências na Liberdade, seus jornais e escolas foram fechados e seus núcleos culturais se esfacelaram.

Com o fim da guerra em 1945, os problemas começaram a se resolver, embora a rendição japonesa tenha originado sérios conflitos em meio à colônia nipônica. Parte dos japoneses (os kachigumi) se recusava a aceitar a derrota do país na guerra, opondo-se aos pragmáticos (os makegumi), que aceitaram a nova situação. Distúrbios e assassinatos na colônia nipônica impediram, por exemplo, o lançamento do filme Vida de artista (Ruten, 1937), de Buntaro Futagawa, que Hirata estava promovendo em 1946. Após associar-se a Saito, fundando a Nippaku Kogyo, Hirata finalmente conseguiu lançar o filme em 1947, no cine São Francisco, com grande sucesso. Começava um novo período de desenvolvimento para o cinema japonês no Brasil, em boa parte, é claro, em função de seu florescimento no Japão. De fato, entre os anos 40 e 50, o Japão se consolidou como o segundo maior produtor mundial de filmes, atrás apenas da Índia, e à frente dos Estados Unidos.


Cine Niteroi, em dois endereços. Grandes produções da Toei, entre elas a série Miyamoto Musashi, de Tomu Uchida

Além do São Francisco, vários cinemas em São Paulo passaram a exibir filmes japoneses. Mas não davam conta da oferta, gerando assim a necessidade de salas voltadas exclusivamente para a produção nipônica. É quando tem início a época áurea do cinema japonês no bairro da Liberdade, com a fundação em 23 de julho de 1953, por Yoshikazu Tanaka, do cine Niterói, na rua Galvão Bueno. O cinema de 1500 lugares ficava no andar térreo de um prédio de cinco andares, que abrigava ainda um hotel e um restaurante. O filme de estréia, Os amores de Genji (Genji monogatari, Kozaburo Yoshimura, 1951), era uma superprodução da Daiei, e o sucesso foi tal que, um ano depois, inaugurava-se um segundo cinema japonês na Liberdade, o cine Tóquio.

Percebendo o potencial do novo mercado, as produtoras japonesas decidiram distribuir diretamente no Brasil. Em 1958, o cine Tóquio passou a ser o exibidor da Toho que, no ano seguinte, transformaria o cine Jóia em seu lançador. O cine Nippon transformou-se no exibidor da Shochiku, e o Niterói, da Toei. Em 1962, o cine Tóquio passou a se chamar Nikkatsu, tornando-se exibidor exclusivo dessa produtora. Eram no total quatro cinemas japoneses que transformavam a Liberdade numa verdadeira Cinelândia nipônica.

Nos anos 60, era entretenimento regular entre a colônia japonesa – e sofisticado entre a classe artística brasileira – ir ao cinema na Liberdade. As chances eram grandes de se ver clássicos de Kobayashi, Kurosawa, Toyoda, Shibuya, Uchida, ou películas inovadoras de Shindo, Masumura, Sugawa, Shinoda, Teshigahara, Oshima. Mas no final da década já se notavam sinais de declínio, acompanhando a própria crise na matriz, onde as produtoras enfrentavam a dura concorrência da televisão.

Os cinemas japoneses da Liberdade começaram a sofrer transformações. Em 1967, o Nikkatsu fechou. Em 1968, o Niterói mudou de endereço, para dar lugar ao metrô, e passou a sobreviver de filmes do gênero yakuza, ou máfia japonesa. Em meados dos anos 70, a Toho encerrou sua distribuição no Brasil. Em 1980, com o fechamento do cine Nippon, a Shochiku passou a exibir seus filmes no Jóia, que também não resistiu muito, fechando em 1987. O Niterói ainda tentou sobreviver, mostrando pornochanchadas brasileiras para cumprir a lei de obrigatoriedade de filmes nacionais, mas acabou fechando um ano depois, em 1988. Era o fim da Cinelância da Liberdade.

Parte do texto “O Cinema Japonês em São Paulo” publicado no site de *Jo Takahashi.
*Jo Takahashi é consultor de arte e cultura na Japan Foundation, onde atuou por 25 anos como administrador cultural. Agora, migra esta experiência para a sua produtora independente, a Dô Cultural, que propõe um conceito design de formatar e desenvolver o projeto cultural.

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BIBLIOGRAFIA DO SITE

PRINCIPAIS FONTES DE PESQUISA

1. Arquivos institucionais e privados

Bibliotecas da Cinemateca Brasileira, FAAP - Fundação Armando Alvares Penteado e Faculdade de Arquitetura e Urbanismo - Mackenzie.

2. Principais publicações

Acervo digital dos jornais Correio de São Paulo, Correio Paulistano, O Estado de S.Paulo e Folha de S.Paulo.

Acervo digital dos periódicos A Cigarra, Cine-Reporter e Cinearte.

Site Arquivo Histórico de São Paulo - Inventário dos Espaços de Sociabilidade Cinematográfica na Cidade de São Paulo: 1895-1929, de José Inácio de Melo Souza.

Periódico Acrópole (1938 a 1971)

Livro Salões, Circos e Cinemas de São Paulo, de Vicente de Paula Araújo - Ed. Perspectiva - 1981

Livro Salas de Cinema em São Paulo, de Inimá Simões - PW/Secretaria Municipal de Cultura/Secretaria de Estado da Cultura - 1990

Site Novo Milênio, de Santos - SP
www.novomilenio.inf.br/santos

FONTES DE IMAGEM

Periódico Acrópole - Fotógrafos: José Moscardi, Leon Liberman, P. C. Scheier e Zanella.

Fotos exclusivas com publicação autorizada no site dos acervos particulares de Joel La Laina Sene, Caio Quintino,
Luiz Carlos Pereira da Silva e Ivany Cury.

PRINCIPAIS COLABORADORES

Luiz Carlos Pereira da Silva e João Luiz Vieira.

OUTRAS FONTES: INDICADAS NAS POSTAGENS.