Salas de cinema na Vila de São Bernardo


Salas de cinema na Vila de São Bernardo 
(1911-1930)

Por Jorge Henrique Scopel Jacobine - Formado em Ciências Sociais pela FFLCH-USP (2002). Desde 2003 trabalha na Seção de Pesquisa e Documentação/Divisão de Preservação da Memória – PMSBC, desenvolvendo atividades na área de preservação, pesquisa e divulgação da história local.

Criado oficialmente pelos irmãos Lumièri, em 1895, o cinema difundiu-se rapidamente pelo mundo. Vinculada inicialmente a outras formas de lazer, como o circo e o teatro de variedades, a nova curiosidade tecnológica rapidamente se destacou entre tantas outras que se multiplicavam no final do século XIX. Atividade majoritariamente itinerante em sua primeira década a apresentação do então chamado cinematógrafo ocorria em feiras, quermesses, circos, cafés e teatros, sendo marcada pela exibição de diversos filmes de poucos minutos de duração – pequenos documentários, cenas cômicas e dramáticas constituídas geralmente de um único plano. Os exibidores destes primeiros anos do cinema enfrentavam dificuldades como o transporte de equipamentos, a necessidade de negociar com os proprietários dos estabelecimentos onde apresentavam os filmes, e a renovação do repertório - a produção cinematográfica era pequena e sua circulação ainda não bem organizada. 

Ocorrida por volta de 1905, a superação destes obstáculos esteve ligada a vários fatores - como a  fixação das salas exibidoras, o barateamento do valor dos ingressos, e um grande aumento da produção cinematográfica - e marcou o início de uma nova fase na história do cinema, a qual se estenderia até meados da década de 10. Nos EUA este processo esteve relacionado ao aparecimento dos Nickelodeons, galpões grandes e rústicos que se tornaram locais fixos de exibição cinematográfica a um custo muito baixo, popularizando radicalmente o cinema e abrindo caminho para sua transformação em grande indústria. Em São Paulo esta nova fase se inicia em 1907, com a inauguração do Cine Bijou Theatre, sua primeira sala fixa, e se consolida nos anos seguintes com a proliferação de pequenos cinemas por todo o Estado.

É a este grupo de acontecimentos que se vincula, em 1911, o aparecimento da primeira sala de exibição fixa na sede do município de São Bernardo, hoje município de São Bernardo do Campo. Batizado como Cinema Paulista, o salão pertencia aos empresários e políticos Carlos Prugner e José D‘Angelo – ambos já eleitos vereadores na cidade, Prugner em 3 legislaturas consecutivas (1902/1905/1908) e José D Ángelo em duas (1902/1905). A vida social e econômica da sede do município, chamada à época de Vila de São Bernardo, se estruturava em torno da Rua Marechal Deodoro e dava, naquele momento, os primeiros passos na direção de sua industrialização. Com uma população pequena e fortemente marcada pela presença dos imigrantes europeus, a cidade abrigava nesta época já algumas  pequenas indústrias, entre as quais, uma fábrica de cerveja pertencente ao próprio Carlos Prugner. O Cinema Paulista estava situado na esquina da Rua Dr. Fláquer com esta mesma Rua Marechal Deodoro que alojava a maioria das pequenas empresas nascentes, além da Praça da Matriz, muitas residências, e quase todo o comércio da cidade.

Uma das principais fontes de informações sobre o Cinema Paulista é o jornal O Progresso, em cujas páginas encontram-se os anúncios publicitários do estabelecimento entre agosto de 1911 até abril de 1912. Através destes anúncios ficamos sabendo que a sala apresentava sessões nos finais de semana, às 8 horas, a um custo que variava de 300 réis - para as gerais no sábado - até 800 réis, para as cadeiras nos domingos. A publicidade no jornal anuncia ainda a exibição numa mesma sessão de '12 fitas novas e selecionadas, algumas de grande metragem', um conjunto que inclui comédias e dramas. A fim de se especular um pouco mais sobre o conteúdo desta programação vale lembrar que neste período eram comuns fitas com duração de 15 minutos, mais longas e mais sofisticadas - com roteiros mais complexos e montagem de vários planos - que as produzidas na década anterior. Pela quantidade de fitas exibidas é razoável supor que as de 'grande metragem' anunciadas se refiram a este padrão de 15 minutos, sendo o restante da programação composto por cenas mais curtas. Nesta época a empresa francesa Pathé dominava o mercado mundial da produção cinematográfica e ainda fabricava a maioria dos projetores utilizados nas salas de cinema do Brasil, candidatando-se assim à origem mais provável tanto da maior parte das fitas exibidas quanto dos equipamentos utilizados pelo Cinema Paulista. 

O Anuário Estatístico do Estado de São Paulo é outro documento que fornece dados importantes sobre o Cinema Paulista. Nele verificamos que o valor do prédio era de 8$000.000, que o salão abrigava 270 pessoas sentadas e obteve lucro líquido de 600$000, além de uma receita bruta de 4500$000. Comparando estes números com os dados listados no mesmo documento, relativos às dezenas de cinemas espalhados pelo interior do estado – e em especial com o Cine Teatro Carlos Gomes do distrito vizinho de Santo André – estimamos dimensões modestas para o negócio de Carlos Prugner. O documento informa também que a sala empregava 6 pessoas e que realizou 80 apresentações em 1911. Considerando 500$ como valor médio do ingresso, podemos então estimar a quantidade de ingressos vendidos no ano, obtendo um total de 9000 unidades, e a média de ingressos vendidos por sessão, que atingiria a taxa de 112,5 - menos da metade da lotação do espaço.

O Anuário só volta a mencionar a existência do Cinema Paulista em 1914 e não cita nenhum dado referente ao mesmo, de modo que no momento não podemos dizer com exatidão até quando a sala existiu. Muito provavelmente o Cinema Paulista, assim como inúmeros outros espaços desta primeira geração das salas fixas de São Paulo, não sobreviveu até a metade da década de 10, momento que marcaria o início de uma nova fase na história do cinema e das salas exibidoras. No único registro oral preservado da memória deste espaço, Henrique Colombo, morador de S. Bernardo do Campo, nascido em 1897 e que, portanto, o conheceu em sua adolescência, assim nos relata: "O primeiro cinema estava situado no Salão Prugner (...) onde está agora o Banco Noroeste (...). Era um casarão antigo muito grande.  (O proprietário) era o dono de uma cervejaria também. O salão era um bom salão até (...) só que era iluminado à carbureto, não tinha luz elétrica".

Segundo o livro de atas da Câmara Municipal de São Bernardo, em outubro de 1912, o vigário Francisco Dolci era o proprietário de um cinematógrafo e pediu, em benefício da Igreja, a restituição dos impostos já pagos sobre a utilização do mesmo - solicitação que foi indeferida pela Câmara Municipal com a justificativa da laicidade do estado brasileiro. O estabelecimento do Padre Dolci denominava-se Cine Parochial e sua existência até o ano de 1914 é atestada pelo Anuário Estatístico do Estado de São Paulo e por um depoimento de José D’Angelo, filho de Vicente D’Angelo que também foi proprietário de um cinema na Rua Marechal Deodoro, sobre o qual o que podemos dizer com segurança é que esteve em atividade por volta do ano de 1914 e foi concorrente do Cine Parochial.

A história do cinema nos anos 20 é marcada pela hegemonia das grandes companhias norte-americanas - como a Fox, a Paramount, a Metro, e a Universal - cujos estúdios se concentravam em Hollywood, nos subúrbios de Los Angeles. Estas empresas controlavam a produção, a distribuição e a exibição dos filmes e foram responsáveis pela transformação do cinema em uma das indústrias mais rentáveis do mundo. Controlando entre 60% e 90% do mercado mundial (cerca de 80% no caso do Brasil), e produzindo cerca de 800 filmes por ano, a indústria cinematografia americana deste período se caracterizou ainda pelo advento dos 'Palácios do Cinema' – grandes e luxuosas salas de cinema – e do unit system – marcado pela substituição do diretor pelo produtor no controle da maioria das atividades ligadas à confecção dos filmes.

Em São Paulo, durante a I Guerra Mundial, devido à escassez de fitas novas importadas, o mercado de exibição cinematográfica passou por sérias dificuldades. Para a maior parte deste período não há registro da atividade de salas de cinema na sede do município de São Bernardo.

Também durante a guerra, devido ao progressivo avanço do cinema americano sobre o mercado nacional, empresários nacionais que, assim como Francisco Serrador, eram distribuidores e exibidores, se tornaram apenas exibidores, dependentes, desta época em diante, de acordos com distribuidoras para sua sobrevivência no mercado. Em 1920, a hegemonia do cinema americano no Brasil já estava consolidada: dos 1295 filmes exibidos no ano, 923 eram originários dos EUA.

Na década de 20, o reaquecimento do mercado de exibição cinematográfica na cidade de São Paulo é marcado pela inauguração de várias novas salas – em especial o requintado Cine República (1921) - e já na segunda metade da década, pelo aparecimento dos primeiros luxuosos 'Palácios do Cinema', como o Alhambra (1928), o Paramount (1929) e o Rosário (1929).

Na pequena Vila de São Bernardo – que impulsionada pelo setor moveleiro avançava paulatinamente em seu processo de industrialização - surgiram nesta década o Cine Enrico Caruso, que depois seria reinaugurado com a denominação de Cine São Bernardo e o Cine Central, conhecido popularmente como 'Cinema do Barbudo'. Ambos se localizavam na Rua Marechal Deodoro, no trecho entre as Ruas Padre Lustosa e Municipal, o primeiro no atual número 1237 e o segundo no 1315, no prédio que depois abrigaria a sede do Esporte Clube São Bernardo, a sede do Palestra São Bernardo e as Lojas Regina.



O Cine Central pertencia à Luiz Aurílio (apelidado de 'Barbudo'), um italiano que foi também comerciante de verduras na Rua Marechal Deodoro. Os registros de impostos da prefeitura comprovam a existência da sala nos anos de 1924, 1925 e 1927. Embora existam pouquíssimos registros escritos de sua atividade, o Cine Central é bastante presente na memória popular relativa ao período, sendo lembrado nos depoimentos de diversos moradores. Alguns deles atestam sua atividade num período anterior ao aparecimento do Cine Enrico Caruso:

Bortolo Basso assim relata: "houve diversos cinemazinhos aí que funcionaram um dia, dois ou três... mas o cinema mesmo que começou a funcionar, o primeiro, eu não me lembro agora o nome da pessoa, eu sei que nós chamávamos ele de 'Barbudo', ele era um italiano, ele usava barba, ele tinha o cinema aqui... aonde existe hoje as lojas Regina, tinha um salão aí, regularzinho (...) o cinema era mudo e nós entravamos no cinema e tinha lá um clarinete, uma flauta e se não me falha a memória um violãozinho, então quando se passava o filme, de acordo com o filme eles tocavam uma música ou tocavam uma valsa, uma marchinha, uma polca".

Segundo Joaquina Firmino de Almeida, "Não existia cinema, não existia esporte, não existia nada. Isso até 1920, mais ou menos, quando começou (...) o cinema do Barbudo".

O marceneiro João Gava, que frequentou a sala na infância, afirmou que "O cinema do Barbudo, eu fui assistir à diversos filmes lá, (...)(durante) mais ou menos uns dois meses. Aí ia ter um espetáculo no palco e primeiro ia passar um filme, mas a máquina não funcionava de jeito nenhum (...) aí pararam com o filme e anunciaram o espetáculo no palco. Era uma companhia cujo nome não sou capaz de lembrar agora. E daquela época o cinema nunca mais funcionou (...). Mas ficou na história. (Dizia-se): - Hoje vou no cinema do Barbudo! - Hoje vou no cinema do Pasin! Aí ficou só o cinema do Pasin, (...) era muito melhor, muito mais moderno. Era mais novo. O cinema do barbudo não tinha cadeira, era banco de madeira. Agora o cinema do Pasin já era cadeira. Só que eram cadeiras soltas e a gente que era molecada ganhava entrada para limpar o cinema quando passava filme. Era o tempo do Buck Jones, Lon Chaney, Boris Karloff, Tom Mix, O Gordo e o Magro, o cachorro Rin-tin-tin – que era famoso, Greta Garbo. O preço da entrada era 10 tostões, a meia entrada era 500 réis. Não podia um cobrar mais do que o outro porque se não ninguém ia".

Em 1928, o Cine Central já não aparece nos livros de impostos da prefeitura e, sendo possível que a sede do cinema já estivesse ocupada pelo recém-criado Esporte Futebol Clube, é provável que tenha sido 1927 o último ano de funcionamento do cinema de Luiz Aurilio.

Já o outro cinema da cidade neste período, o Cine Enrico Caruso, aparece no Anuário Estatístico do Estado de São Paulo desde o ano de 1920. Inaugurado com capacidade para 280 espectadores, este cinema realizou 59 sessões cinematográficas neste primeiro ano e 99 no ano seguinte. Em 1928 o espaço já comportava 550 espectadores, 5 funcionários (em 1920 eram 3) e exibia aumentos de 500% no valor de seu prédio e de 76% na sua receita bruta (comparada à de 1921), dados estes que indicam que provavelmente a sala passou por reforma no período.

Em 1924, o Enrico Caruso aparece nos registros de impostos da prefeitura como pertencente aos irmãos José Pasin e a Artur Gianotti, sendo que o último era também proprietário do Cine Carlos Gomes, em Santo André. Entre 1925 e 1928 a sala pertenceu apenas à José Pasin e seus filhos, entre 1929 e 1930 aparece registrada em nome de Oscar Azevedo Marques, e no início dos anos 30 seria reinaugurada com o nome de Cine São Bernardo, passando as décadas seguintes sob o comando de Francisco Miele.


Cine São Bernardo



Depois da Vila de São Bernardo ter passado cerca de 5 anos sem nenhuma sala de cinema, a ampliação do Enrico Caruso no decorrer da década de 20 e sua coexistência com o Cine Central durante alguns anos parecem refletir a participação da região no processo de crescimento do mercado de exibição cinematográfica que se verificava também na capital. No entanto, não são claras as causas do desaparecimento do Cine Central e da posterior estagnação do mercado local nas próximas duas décadas, com a presença de apenas uma sala exibidora. Ao fim do Cine Central podem estar ligados aos seguintes fatores:

1 - Neste período existia uma tendência de melhoria nas condições de conforto e higiene das salas, a qual estaria ligada ao processo de incorporação das classes médias e altas ao público regular dos cinemas, o qual, em anos anteriores, seria constituído pelas camadas mais pobres da população, as quais estariam dispostas a enfrentarem as condições mais rústicas das salas da época. A possível reforma do Enrico Caruso pode ter sido uma resposta a esta tendência, que o teria colocado em situação privilegiada em relação ao concorrente, absorvendo sua fatia no mercado.

2 -  Um anúncio no jornal para exibição, na Semana Santa, da grande produção Rei dos Reis, de Cecil B. DeMille, indicava que o Enrico Caruso funcionava associado a outros cinemas da região do ABC, através das Empresas Reunidas Cinematográficas do Município de São Bernardo. Esta associação pode ter sido determinante para o acesso mais rápido aos filmes com maior potencial de público. Uma vez que os acordos de distribuição eram fundamentais para a sobrevivência das salas no período, a ausência do cinema de Aurilio nesta associação pode estar entre os motivos do seu desaparecimento.

Este mesmo anúncio indica ainda que, mesmo trabalhando em conjunto, os cinemas do ABC apresentavam uma programação atrasada em cerca de um mês em relação à capital paulista, evidenciando a posição secundária em que se situavam dentro do circuito exibidor. Além de Rei dos Reis, o Cine Enrico Caruso programou neste mês Dois Águias No Ar, sendo que ambos os filmes estrearam em São Paulo em março do mesmo ano.

Texto publicado, originalmente, no periódico "Raízes", projeto editorial da Fundação Pró-memória de São Caetano do Sul.

Imagens :
Divisão de Preservação da Memória - Seção de Pesquisa e Documentação - Prefeitura de São Bernardo do Campo

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BIBLIOGRAFIA DO SITE

PRINCIPAIS FONTES DE PESQUISA

1. Arquivos institucionais e privados

Bibliotecas da Cinemateca Brasileira, FAAP - Fundação Armando Alvares Penteado e Faculdade de Arquitetura e Urbanismo - Mackenzie.

2. Principais publicações

Acervo digital dos jornais Correio de São Paulo, Correio Paulistano, O Estado de S.Paulo e Folha de S.Paulo.

Acervo digital dos periódicos A Cigarra, Cine-Reporter e Cinearte.

Site Arquivo Histórico de São Paulo - Inventário dos Espaços de Sociabilidade Cinematográfica na Cidade de São Paulo: 1895-1929, de José Inácio de Melo Souza.

Periódico Acrópole (1938 a 1971)

Livro Salões, Circos e Cinemas de São Paulo, de Vicente de Paula Araújo - Ed. Perspectiva - 1981

Livro Salas de Cinema em São Paulo, de Inimá Simões - PW/Secretaria Municipal de Cultura/Secretaria de Estado da Cultura - 1990

Site Novo Milênio, de Santos - SP
www.novomilenio.inf.br/santos

FONTES DE IMAGEM

Periódico Acrópole - Fotógrafos: José Moscardi, Leon Liberman, P. C. Scheier e Zanella.

Fotos exclusivas com publicação autorizada no site dos acervos particulares de Joel La Laina Sene, Caio Quintino,
Luiz Carlos Pereira da Silva e Ivany Cury.

PRINCIPAIS COLABORADORES

Luiz Carlos Pereira da Silva e João Luiz Vieira.

OUTRAS FONTES: INDICADAS NAS POSTAGENS.